Realismo mágico

No último 17 de abril de 2014, quando a morte de Gabriel García Márquez nos deixou mais órfãos, me deparei na internet com a seguinte preciosidade:

Se deixou levar por sua convicção de que os seres humanos não nascem para sempre no dia em que as mães os dão à luz, e sim que a vida os obriga outra vez e muitas vezes a se parirem a si mesmos.” Gabriel García Márquez, em Amor nos tempos de Cólera

Acho de uma sabedoria tremenda e muito afinado com os desafios que permeiam o trabalho com crianças e adolescentes. Pois, para que a criança possa “se parir” e parir algo de si para o outro é preciso de um espaço, da criação de um espaço que lhes permita apreender a realidade à sua maneira.

Todas as teorias fabulosas elaboradas pelas crianças sobre as origens dos bebês, sobre o mundo, sobre a morte e sobre a vida, que sempre nos surpreendem, são parte desse processo de criação da realidade e recriação de si, numa espécie de realismo mágico que será a fonte da capacidade de acreditar e de viver uma vida que tenha um sentido próprio. Não por acaso rimos quando nos deparamos essas invencionices infantis. É prazeroso e divertido reencontrar essa capacidade criativa que em nós está perdida ou transformada.

Parto dessa frase de um de meus escritores preferidos, para retomar, mais uma vez, o tema da culpabilização, mas com destaque em outro aspecto de sua manifestação: o excesso de culpa e de preocupação pode acabar fazendo com que a mãe “se cole” à criança, criando teorias e explicações ali onde a criança poderia ter um espaço para, a partir de usa própria realidade mágica, criar e recriar a si mesma. Explico: vamos supor que a criança esteja com uma dificuldade em aprender o português na escola. Um pai muito culpado, que acredite plenamente que tudo o que acontece de bom e de ruim com a criança é culpa dele, tenderá a achar uma explicação baseada em si mesmo, sem levar em conta os sentidos que a criança pode dar para essa dificuldade. Por exemplo: “Eu quando era criança tinha exatamente a mesma dificuldade em português”, “essa professora é muito malvada, eu já percebi logo no primeiro dia de aula”, “ele está com dificuldades em português porque seu amiguinho vai muito melhor em português”, e por aí vai…

Quando a criança já adquiriu a língua e tem meios de expressão, muitas vezes, se nos esvaziamos um pouquinho de nós mesmos, conseguimos criar um espaço para que a criança, ela própria, consiga elaborar o que se passa com ela, contando apenas com nosso suporte. Mas para que isso seja possível, é preciso se deixar levar pela “convicção de que os seres humanos não nascem para sempre no dia em que as mães os dão à luz, e sim que a vida os obriga outra vez e muitas vezes a se parirem a si mesmos.” Esse abandono do lugar de “sabe-tudo” pode ser difícil mas também libertador, na medida em que proporciona a abertura para um espaço de compartilhamento de sentidos, sem o qual a realidade da vida pode ficar muito dura porque desprovida do poder mágico das trocas simbólicas.

Texto publicado originalmente em: http://www.roteirobabycuritiba.com.br/site/realismo-magico/